sábado, 27 de setembro de 2008

Verdadeiro ou Falso?

Perdi uma aposta. Um dia desses, há pouco tempo atrás, estava jantando com um amigo que sempre se definiu como “ignorante vegetal” – isto é, como uma pessoa que nada entende de plantas - , quando reparei num arranjo de flores preso a parede, a poucos metros da nossa mesa. Eram gérberas. Sem dúvida, flores verdadeiras, mas tão perfeitas que pareciam de mentira. De brincadeira, desafiei meu amigo a dizer se eram falsas ou não (sempre fazíamos isso) e ele, descolado, disse que deveria opinar primeiro.
Fui sincero: “- Não parece, mas são flores de verdade.”
Meu amigo retrucou: “– Pois eu aposto que são de mentira.”
Falou aquilo por pura pirraça, só para afrontar. Mas eu decidi topar a aposta. Quem perdesse, pagaria o jantar.
Levantei e fui até junto da parede tocar nas pétalas de uma das flores, porque sei que, ao tato, a verdade sempre se revela. E então veio a surpresa: eram falsas.
Tão reais e, contudo, tão falsas.
Meu amigo vencera.
Passados alguns dias, recebi um arranjo de rosas – verdadeiras; claro. E eu, que quase nunca recebo flores, fiquei radiante com o buquê. Eram botões vermelho-sangue, perfeitos, bem-acabados, cada pétala fechando-se sobre a de baixo num contato harmônico, as folhas saindo das hastes num ângulo estudado, irrepreensível. Lindas, lindas rosas. E ainda por cima vermelhas. Ao olhá-las, eu me perguntei como ficariam quando desabrochassem – se já eram belas em botão.
Arrumei-as num vaso comprido de cristal, cortando as pontas das hastes uma a uma para que as flores durassem mais, como aprendi com minha avó. Terminado o trabalho, ainda coloquei uma pitada de açúcar na água, outro segredo para obter a longevidade das rosas. Depois, dei uns passos para trás para admirar o arranjo.
Cada botão se equilibrava na ponta da haste com elegância e perfeição, as folhas eram de um verde encerado, quase irreal. Chegavam a ter uma beleza excessiva, que as fazia parecerem artificiais. Por um segundo, lembrei da aposta perdida.
Depois olhei o relógio e, vendo que estava atrasado, saí pra trabalhar.
À noite, ao entrar em casa, meus olhos imediatamente se prenderam ao buquê.
As rosas estavam exatamente idênticas. Apesar do calor, nenhum dos botões ameaçava desabrochar. Continuavam tão intocados, tão perfeitos, que pareciam de mentira, num contraponto com as gérberas do restaurante. E, no dia seguinte, ao acordar, nada mudara.
Os botões lindos, perfeitos, continuavam fechados. Cheguei perto e toquei um deles com a ponta dos dedos; seu acetinado não deixava dúvidas de que era real.Mas por que aquelas flores não se abriam? Seria culpa dos adubos, dos métodos de armazenamento? Seriam rosas transgênicas? Num impulso, inclinei o rosto e cheirei o botão.
Não tinha cheiro de nada.
Sem desabrochar, sem desfolhar, sem ter perfume, aquelas rosa “pós-modernas”, perfeitas em sua forma, eram de uma beleza morta, como feitas de pano.
E foi assim, olhando para elas, que me comecei a refletir sobre as fronteiras entre o falso e o verdadeiro hoje em dia. Há pouco, eu escrevia em meu computador sobre as pérolas, que deixaram de ser valiosas depois que o homem descobriu como cultivá-las, fazendo desaparecer a diferença entre uma pérola de verdade e uma “fabricada” ou cultivada.
Pois no mundo contemporâneo parece que todas as fronteiras se esgarçam, misturam, confundem. Todas elas.
Antes bem marcadas, as diferenças entre o homem e mulher, criança e adulto, público e privado ficaram de uns tempos pra cá enevoadas, fluidas.
Mas nenhuma fronteira desaparece mais rapidamente do que aquela entre o que é falso e o que é real.
Na literatura, há uma tendência a misturar ficção e não ficção, sem dar ao leitor a chance de discernir qual é qual.
Demarcar territórios, nesse sentido, deixou de ter importância. No jornalismo, já se discute a ética de manipular eletronicamente as fotografias, acrescentando ou tirando detalhes, fazendo composições, pois ficou impossível dizer se uma foto exprime de fato uma verdade. A imagem perdeu o poder da prova – o que é inquietante.
A tecnologia da falsificação se aperfeiçoou de tal forma que vai ficando cada vez mais difícil distinguir a cópia do original, e isto se aplica a tudo, de bolsas Vuitton a vestidos Prada, de vasos Gallé a relógios Rolex, programas de computador, tênis, CDs, quadros e até – por que não dizer? – seres humanos.
Para bem e/ou para o mal, a estética da mentira é uma realidade. Vai ficando cada vez mais difícil determinar o que é falso e verdadeiro no aspecto de uma pessoa.
Por exemplo, os sorrisos. - Como um gesto tão simples pode causar tanta dúvida?
E o que dizer dos corpos sarados, lipoaspirados de mulheres e homens? Ainda mais num país como o nosso, vaidoso e nu.
Onde será que vai parar tudo isso?
O meu medo é que, se as fronteiras entre o falso e o verdadeiro continuarem a desaparecer, o mundo todo acabe se transformando numa coisa amorfa, pasteurizada, insípida, inodora e incolor. Um mundo fake!
Como as flores que tive na minha sala há poucos dias, as minhas rosas transgênicas.


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