terça-feira, 1 de novembro de 2011

Coerções de Lenine

Nada pra fazer. Sento na cama. Dedos inquietos e descoordenados batucam intimamente em meus joelhos. Olho pro quarto procurando defeito. Acho, mas não dou bola. Não era defeito o que eu procurava mesmo. Comida. E se eu comer? Não estou com fome, mas também não estou estufado. Na cozinha, delícias de outrora passam a não ser mais capaz de aquietar meu estômago. Como pode? Abro a porta do armário do quarto e me olho no espelho. Tudo monotonamente igual. Especialmente hoje, não estou bonito nem feio. Fecho desleixado, deixando vazar uma fresta escura. Um monstro já morou lá anos atrás. Hoje não tenho mais saco para homens do saco. Comida. E se eu for comido? Não. Se não como quando não sei o que fazer, também não vou ser comido.

Música? De novo? Às vezes tenho medo de ouvir tanta música e acabar esquecendo a entonação normal. Já pensou se começo a falar tudo cantando? E cantar tudo falando? Bizarro. Música não. Ontem meus ouvidos pediram piedade e hoje é dia de dar ouvidos a eles. Hoje, repito, música não. Até os meus CDs sabem do mal que tenho causado aos meus tímpanos. Combinam, secreta e conspiratoriamente, de entrar em intervalo ou parar bem quando eu os ponho. Eu sei. Não vou nutrir a diversão dos outros às minhas custas. E TV nem pensar. Por quê? Ah, porque tem canais demais. Começo a ver alguma coisa, entram os comerciais, mudo de canal e esqueço de voltar. Nunca mais, desde meu primeiro controle remoto, assisti a um programa inteiro na TV. Preguiça de me perder na TV.

Ler também não. Vou ler o mesmo parágrafo vinte vezes e vinte vezes vou me emputecer por não prestar atenção. Perda de tempo. Pior, perco meu tempo. Não tenho a quem xingar a não ser a mim mesmo. Todo mundo viajou. Ok, nem todo mundo, vai... Mas pra quem não viajou eu não estou com o menor saco de ligar. Íssa! Falei! Falei? Falei nada. Pensei. Ê, vida besta... Besta demais para um coração cavalar. Pensa demais sem colhão pra falar.

No andar de cima o médico que tem cara de quem... Deixa pra lá. Ele ouve Lenine. Lenine é legal. Tem aquela música da calma, da alma. Ih! É bem essa que ele está ouvindo. Música legal. Mas está irritando. Muito lentinha. Muito zen. Zen é atraso. Não consigo ficar zen. Não consigo ficar sem. E isso é zen. Ficar sem fazer. Sem pensar. Sem sentir. Sinto muito. Muito para não sentir. Não quero não fazer nada. O médico, este sim, está zen. Colocou em dízima periódica a música da calma da alma do corpo da vida que não pára não, não pára. Não é essa? Ah... Pois essa outra então, que você sabe qual é, não pára de tocar. Está no repeat. Filho da puta.

Eu sei que disse que gosto da música. Eu amo música. Boa música. E a música é boa quando você está pensando calmamente sobre a própria existência tal como Lenine criando sua obra de arte. Eu disse obra de arte? Disse. Mas não é o que eu penso agora. Juro. Agora quero dar um tiro no teto e tentar acertar o médico pelo saco. Já pensou que legal? Ai, que horror, né? É. Pego meus pesinhos. Um, dois. Até quando o corpo pede... Três, quatro! Um pouco mais de alma... Cinco, seis, puuuuta que o pariu. Corro à janela com os palavrões escondidos, mal se contendo embaixo da língua. É claro que não grito. Resmungo para minhas entranhas desinteressadas, apenas. Como vou encontrar com ele no elevador depois? Sim, sim, eu ligo para isso. Não moro num andar baixo e ele mora ainda acima de mim. Presumindo que ambos estejam sempre fazendo um itinerário até a garagem ou o térreo, longos metros de concreto me ruborizariam e torturariam minhas mãos inquietas e inseguras. Não estou a fim de passar por isso.

Volto, como um cachorro preso na copa sem o que fazer, a sentar na cama e procurar defeitos no quarto. Uma mosca ameaça entrar, robótica e débil, pela janela. Olho ameaçadoramente, como se fosse capaz de transmitir um alerta telepático. Rio leve quando ela se vai, no riso dos bobos que acreditam poder mais que os outros. Aê, moscão, captaste minha mensagem. Muito bem! Uma pilha gigantesca de roupas lavadas e passadas aguardam, submissas, a volta de meu bom humor. Tiro os olhos dela com o mesmo desprezo com que pus. Desses momentos a vida podia me poupar.

Tudo é tão corrido e, de repente, quando não consigo fazer nada, continuo acelerado. Como um carro robótico e débil consumindo combustível sem sair do lugar. O dono, irritado, chutaria o pneu. Seria o mesmo que topar o mindinho na quina da cama neste exato momento. Bater o mindinho é morrer aos poucos. Batendo ou não, morrendo ou não, não resolve o problema. Socorro! Estou acelerado e não saio do lugar! É o tempo brincando de sado-masoquismo. Me amarra e me venda enquanto a vida grita urgente pelos poros e suores.

O tempo não me mata apenas quando não o vejo passar. Mata assim também, mas é indolor. Quando vemos, já foi. O pior acontecia comigo. O pior é quando mata e temos que assistir à própria morte. O ritual. I’m in the death row. Todos estamos, mas muitos não se dão conta. Colocam Lenine em suas celas para se desvirtuar do que espera. Logo mais acaba corpo, vida, calma, se bobear até alma. Vai saber. Bem vindo ao corredor da morte, baby. Aqui não acreditamos em nada. Aqui só fazemos fugir, por alguns instantes, do leito letal. Aqui só corremos contra ele, o tempo. Corra também, corra! Mas sua pista, caro atleta corredor, atém-se ao corredor. Você se mata aos poucos. E só lembrar-se disso de vez em quando. Tempus fugit. Agarre-se a seu algoz.

A mosca volta e dessa vez minha paranormalidade não funciona. Roda em círculos sem finalidade alguma. Para quê? Como ela vive rodando feito uma, bom, feito uma mosca tonta e não faz mais nada? Será que ela é, essa mosca idiota que acaba de ameaçar entrar no meu nariz, mais sábia que eu? Será que é tempo que me falta pra perceber? Será que eu tenho esse tempo todo a perder? E quem quer saber? A vida é tão rara... Sabe, agora que o médico desligou o som e arranjou algo melhor para fazer e eu não, me deu vontade de ouvir de novo aquela música do Lenine, que eu nunca lembro o nome. Pois é, mas eu nem tenho o cd, nem sei o nome da música. Paciência.